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Conversar com a Monja Coen Roshi é como ser guiada numa meditação. A voz doce e suave conduz-nos numa espécie de mantra e por mais voltas que a conversa dê há sempre um ensinamento sobre a vida. E não é por acaso que o seu mais recente livro reúne “108 Contos e Parábolas Orientais”, da Editora Planeta.
Já bem embalada vou descobrindo uma comunicadora próxima, de sorriso largo e solto, com um humor peculiar. Longe do imaginário do Monge impenetrável, ainda que bastante regrada. Tem ascendência portuguesa, é missionária oficial da tradição Soto Shu, com sede no Japão, e fundou a Comunidade Budista Zen do Brasil em 2001, onde formou meio milhar de discípulos e é conhecida como a melhor amiga da paz interior. Fez os votos monásticos há precisamente 41 anos, antes tinha sido Jornalista.
Vive no templo Tenzui Zenji, em São Paulo, longe do centro e da confusão. Todos os dias se levanta às 5h20, começa por alimentar as três cadelas que moram consigo, logo de seguida medita meia hora a 40 minutos e faz as preces matinais. E não tem um dia igual. Escreve, estuda, responde a emails, dá entrevistas, viaja para dar palestras, aulas de meditação e cursos de budismo. Aliás, em maio regressa a Portugal para conduzir um retiro. Tem um programa na rádio brasileira Vibe Mundial FM95.7, todas as segundas e sextas-feiras ao final da tarde; uma rubrica quinzenal no jornal Zero Hora de Porto Alegre e mais de 20 livros publicados.
Li que trabalhou como jornalista e teve uma juventude de excessos. Considera que isto foi noutra vida ou nós temos várias peles?
A minha mãe costumava dizer: “Quantas vidas numa só vida”. Na verdade, temos inúmeras possibilidades na existência e passamos por fases diferentes. E nunca somos exatamente a mesma pessoa. O mais importante de perceber é que nos estamos sempre a refazer e a reconstruir, em cada livro que lemos, em cada experiência que temos, tudo nos transforma. Mas será que estamos a ser cuidadosos com as nossas escolhas e a perceber que tudo isto é como um jogo de xadrez? O nosso olhar, assim como o das empresas, tem de ser de longo alcance. Cada atitude que tomamos tem consequências, portanto temos de ser mais atenciosos e cuidadosos naquilo que fazemos, falamos e pensamos. Passei por muitas experiências…
Quando ou o que fez com que a sua conceção das coisas se tornasse completamente diferente? Ou seja, o que a fez despertar para o Budismo?
Quando era muito jovem, tinha acabado de entrar na faculdade e arranjei um trabalho no jornal Estado de S. Paulo, em 1968. Aos 19 anos somos muito sensíveis e tínhamos um governo militar, a juventude saía à rua, fazia manifestações, e tudo isto me foi tocando muito. Saí do meu locus familiar e do bairro onde morava para entrar nos valores do Mundo. Entrevistava pessoas de comunidades carentes, até à Rainha Elisabeth e o Príncipe Philip, e fui-me apercebendo de que somos todos humanos.
A Rainha também cuidava do Príncipe e ficava perto dele. E numa dessas comunidades desfavorecidas, de chão de terra e as paredes de madeira e papelão, vi uma senhora ao lado de uma quantidade de crianças a fazer feijão numa lata de leite em pó num fogareiro, o cheiro era de uma mistura de suor e de comida e pensei: é um ser humano semelhante a mim. Foi a primeira grande perceção do “somos todos humanos”. E foi aí que pensei: será que existe outra maneira de ser no Mundo? Será que podemos ter sociedades menos violentas, menos agressivas? Na altura, havia muita coisa a acontecer: muitas mortes, saltimbancos, colegas meus a serem presos. E um dia pediram-me para fazer uma reportagem sobre sociedades alternativas. Descobri que nos EUA, na Califórnia, havia um grupo Zen, com comida natural, agricultura sem agrotóxicos, que faziam trocas, reciclavam, e achei bonito.
Em simultâneo, ocorria a guerra do Vietname, os monges vietnamitas iam à praça pública e enchiam-se de gasolina e ficavam sentados a meditar em chamas para que a guerra parasse. Isto foi muito forte. As capas das revistas tinham estes monges sentados a arder. Eu era brava, batia a porta e esta capacidade de controlo interessava-me. Também os Beatles me chamaram a atenção pela capacidade de comunicação em massa, porque souberam tocar no nosso coração com músicas simples e amorosas e estavam a ir para a Índia praticar meditação. E estas três coisas ressoaram no meu computador mental: a meditação, o budismo e a reconexão com a Natureza, no fundo, o respeito à vida.
O caos pode fazer-nos querer encontrar um sentido mais profundo, mais substancial. Antes de chegar a Monja procurava encontrar alguma espécie de lar espiritual?
Sim, estava à procura de uma tranquilidade espiritual. Tinha relações abusivas na redação, passei por coisas difíceis.
A nossa experiência de vida conduz-nos se estivermos abertos. Se nos fecharmos é mais difícil. Porque há mais mulheres à procura de terapia do que homens? Porque eles resistem, não querem parecer vulneráveis. Nós não nos curamos sozinhos, somos seres gregários, vivemos em relação com outras pessoas, elas nos fortificam ou nos enfraquecem. As pessoas com quem nos relacionamos mudam a nossa vida, tal como os livros, os programas de televisão, de rádio, as palestras, os encontros. Mas temos de permitir que isso aconteça.
Tenho um amigo Professor de Ciências da Religião, em Minas, é Católico Apostólico Romano e diz que a experiência de Deus é como se Deus entrasse nele. Acho que para o sagrado entrar temos de ter a porta aberta, senão não entra. Temos de abrir a possibilidade do novo, que é muito antigo. Somos nós que criamos as causas e as condições para que a Humanidade acorde e viva em plenitude.
Interessa-me a noção da possibilidade do novo, que é antigo. Tanto quanto consigo perceber, acontecem mais coisas além daquilo que somos capazes de ver ou compreender e precisamos de encontrar uma forma de nos deter nos seus mistérios e convocar coragem necessária para não estarmos sempre a recuar para o espaço da mente conhecida. Onde podemos ir buscar estas âncoras?
Os mistérios da fé vão sempre existir e não têm explicação. E acredito que as práticas meditativas, as de introspeção, quando entramos em contacto com o nosso eu verdadeiro, fazem perceber que somos uma só família humana e por isso cuidamos da nossa família, que são todos os grupos humanos e só vamos sobreviver neste Planeta se cuidarmos uns dos outros.
No Japão, por exemplo, convidam as pessoas a ter banhos de floresta, andar no meio da mata, sentir. Também faço caminhadas e abraço árvores, sinto a sua força, sentia essa conexão. Os povos originários chamam as árvores do povo em pé.
Somos seres naturais e é crucial reconectarmos com a nossa natureza verdadeira. O Budismo fala muito disto, de nos reconectarmos com a nossa natureza Buda, somos todos povos originários num processo de transformação e esquecemos as nossas origens. Porque é que quando vamos para o mato nos sentimos confortáveis? Porque é que quando chove gostamos do barulho da chuva e do cheiro? Porque é a nossa origem, não nos podemos esquecer disto.
Nós vamos cobrindo tudo de concreto, nós não temos uma tesourinha que nos recorte da realidade, nós estamos interligados. Talvez este seja o princípio da religiosidade mais importante. O Papa Francisco fala disso na sua última encíclica. E quando percebemos isso, o nosso olhar muda e sentimos prazer em ir para a praia, entrar no mar é como estar no útero materno e aqui nos reconectamos com a origem da nossa vida.
Não podemos só trabalhar, trabalhar, trabalhar, fechados no escritório. A tecnologia é importante, mas ela nos afasta do contacto direto e como é importante estarmos presentes. No Japão também dizem para fazermos as coisas com as mãos, tudo o que é assim feito é mais delicado, não se limpa o chão com os pés, mas com as mãos.
E parece combinado, esse é o tema da nossa edição: Handle with Care.
O cuidado é fundamental para a nossa vida, não só o cuidado com o nosso organismo vivo que é o nosso corpo, mas com o organismo vivo do Planeta. Agora, para trabalhar melhor e produzir tenho de estar bem.
Estamos numa crise de processos emocionais com sequelas que não vêm só da COVID, já estavam a acontecer antes, a COVID só veio acelerar a depressão e a insatisfação. Ainda não encontrámos o nosso ponto de equilíbrio, aquilo em que sentimos prazer em fazer e queremos fazer.
Nesse aspeto, sinto que os pais de crianças pequenas são uns privilegiados. As crianças despertam-nos, à sua maneira, para o mais básico da vida, seja o desacelerar, o ser paciente, ou estar horas a olhar para a relva a descobrir insetos.
As crianças são mais sensíveis do que os adultos. Começámos a correr atrás de lucro e sucesso… Se conseguirmos no nosso dia a dia pequenos espaços para parar de mexer no computador e olhar para uma janela e ver o céu, para as nuvens, ver as folhas da árvore. Às vezes, estamos tão ocupados na nossa cabeça que não recebemos este respirar, esta inspiração que melhora a nossa condição mental.
O Mundo está acelerado e nos aceleramos junto, mas temos de ter pausas. É como a música, porque é que é bonita? Porque tem pausas, as nossas conversas também e a nossa mente precisa. No Budismo fala-se muito de um espírito são. Mente sã em espírito são, não há separação. Somos um ser holístico, completo, com partes interligadas.
Quando comecei a fazer práticas meditativas no Budismo Zen ficou muito claro.
Conhecer melhor a mente é a grande mudança do nosso século. A Neurociência, a descoberta dos processos mentais, da psique humana. E o que é que o zen trabalha? Conhece-te a ti mesmo.
Não fico presa ao que o Freud vai chamar de ego – ao “eu preciso”, “eu quero”, “eu tenho” –, saímos deste lugar e entramos no “nós”, é conhecer o grande eu, porque nós somos esse grande eu, mas também existe o pequeno eu, o euzinho, o ego. Nós não nascemos com isto. Se não houver estímulo não acontece, como tudo na vida o que é estimulado se desenvolve, o que não é murcha. Nós não podemos murchar para a nossa vida verdadeira!
O Budismo Zen é uma religião ou uma filosofia?
Ambos. Na Ásia é uma religião de milhões de adeptos, que têm fé, fazem peregrinações de joelhos até templos, como na religião Católica. Agora, também existem os Budólogos, são sociólogos que estudam as raízes filosóficas dessa tradição. E há muitas pessoas do Ocidente que dizem: “Sigo a filosofia budista, mas vivo a religião católica”, ou “sigo a filosofia budista, mas sou judeu”, os jubo – judeus budistas, é uma coisa que se está a espalhar pelo Mundo como se fosse uma filosofia, mas na verdade é uma religião.
Buda era um príncipe na Índia que começa a questionar o Hinduísmo. As questões dele são existenciais: porque há nascimento, velhice, doença, sofrimento e morte? Que sentido tem a vida? A religião não aquietava a sua mente e ele vai passar por várias práticas diferentes, de ascetismo à prática de ioga, até que vai fazer zazem – sentar-se em meditação. Não é qualquer um de nós que consegue, ele preparou-se para abrir esses portais de comunicação com o sagrado e a experiência mística dele é essa. De repente diz: “Eu, a grande Terra e todos os seres, juntos, simultaneamente, nos tornamos o caminho”. É parecido com o que Jesus fala, mas o Buda diz que tudo é junto, eu me sinto identificado com a árvore, a cobra, o escorpião e o passarinho. Tudo sou eu e eu estou em tudo. É isto que falamos da expansão da consciência, isto é o que falamos do despertar.
Os Psicólogos têm usado as práticas meditativas como um processo de levar pacientes a uma expansão de consciência e não precisam de seguir os ritos religiosos e as suas formalidades. Como religião e pensamento filosófico, começa na India, espalha-se por toda a Ásia e Europa, EUA e Austrália também. Tem tido uma expansão mais como filosofia. Muitas pessoas vêm aqui e mantêm as duas tradições espirituais sem conflito.
Entende que o despertar do ser humano tem de passar por este lado espiritual?
Nós falamos que temos de despertar pela razão ou pela intuição, mas uma não existe sem a outra. A razão não existe sem o espírito, eles se completam. Temos um processo lógico, bem interessante. Há um Professor em Barcelona que escreveu a Inteligência Espiritual, Francesc Torralba; é uma jóia, fala que a IE é comum a todos os seres humanos, todos passamos por isto, por questões existenciais: o que fazemos aqui? Porque morreu a minha tia? Isto são questões a que ele chama de espirituais. Aliás, tem o caminho da Filosofia que nos leva a despertar a lógica e tem o caminho da espiritualidade que é a Filosofia junto com a fé e a fé não tem explicação.
Vê neste lado mais espiritual um ato de intensa vulnerabilidade perante a Humanidade? Ou por outra, o lado espiritual será, no fundo, detetar a beleza e o amor nas coisas?
Sim! Acredito que é isso, se desenvolvermos essa sensibilidade espiritual. A nossa vida é a comunhão com todas as formas de vida. E a perceção de que, através de práticas, todas as tradições espirituais têm isto. Por exemplo, o Islamismo tem o Suf, uma dança para termos uma elevação espiritual, para que a mente tenha acesso a outro nível de questionamento; a Cabala, no Judaísmo, também é um questionamento filosófico que leva a pensar de outra forma.
Temos partes que transcendem a lógica, que vão além da lógica, tanto que no Zen dizemos tem o pensar, o não pensar e ir além do pensar e não pensar, quando percebemos que as duas coisas são importantes, a fé e a lógica.
Talvez a procura também seja a experiência espiritual.
A procura do sentido da vida fica mais enfatizada quando estamos próximas da morte ou em sofrimento. Porque é que os grandes líderes todos tiveram a procura? Jesus em menino já filosofava, questionava. Ou como dizia Nietzsche: que sentidos dou à minha vida? Porque mudam. Mas há momentos cruciais.
Como é que o budismo zen pode ajudar a lidar com a morte?
Entendendo que tudo o que nasce morre, tudo tem começo, meio e fim, e que a morte não é o fim, é um período em si mesmo, e que a vida não vira morte. Como as estações do ano, são etapas.
Veja, hoje é o aniversário de nascimento do fundador da minha ordem, faria 1024 anos, ele está vivo em nós, estudamos os seus textos, praticamos o que ensinou, era um monge do Japão. O corpo morreu, mas tudo o que ele foi e fez continua.
Sabe que o Budismo Zen do Japão não fala em reencarnação. Mas o Budismo Tibetano falava. Agora, se há ou não há é daquelas coisas que não podemos comprovar.
Quando Buda está a morrer, há 1600 anos, os seus discípulos começam a chorar e ele diz: “Não se lamentem, não é o meu corpo que vocês amam, é o ensinamento, a ternura, o amor e o cuidado”. Façam com que esses ensinamentos estejam vivos e eu viverei para sempre. Os que morrem antes de nós vivem em nós. Vamos deixar este legado para os nossos sucessores, consanguíneos ou não.
Disse que as reflexões e os ensinamentos de Buda são ajudas poderosas na superação de problemas. Ser Monja é também saber cuidar do outro.
Quando falamos em tornarmo-nos monges, a palavra em japonês significa sair da família. Ou seja, raramente participo nas festas de aniversário de familiares, porque se estou no templo e tenho uma missa memorial a fazer, se alguém vem aqui e pede atendimento é a minha prioridade. Mas a minha filha e neta e família entendem isso, a prioridade da minha vida é a família humana e a minha função como religiosa.
O meu trabalho e profissão é ser Monja e isso é cuidar e servir, passar ensinamentos, tranquilidade e bênçãos. O meu papel no Mundo mudou, para chegar aqui tive de estudar, conhecer a tradição e perceber se tinha afinidade com esta ordem religiosa. Estudei a sua origem, as principais personagens, os ensinamentos básicos, em profundidade, sobre impermanência, transitoriedade, nada fixo, de tudo estar interrelacionado, causa e condições num processo infinito de transformações.
Começamos por meditar a olhar para uma parede e de repente começo a ver a minha vida, a entender os meus traumas como parte de mim, se não tivessem acontecido não seria esta pessoa. Não reclamo de nada, não resmungo e aceito.
Estive três anos nos EUA na preparação e fui para o Japão onde fiquei oito anos no Mosteiro Feminino de Nagoya e regressei para o Brasil e trabalho num Templo. Sou Monja há 41 anos, foi a melhor coisa que fiz na minha vida, foi o melhor encontro e um encontro comigo.
E pode aprofundar um pouco quais são os ativismos da sua ordem?
Temos uma grande preocupação com o meio ambiente. Tudo o que Buda ensinou: “Eu, a grande Terra e todos os seres” é perceber que não existimos sem tudo isso e por isso temos de cuidar do Planeta, meio ambiente e o nosso corpo, respeitamos a vida que nos mantém vivos. A nossa Ordem tem três princípios: meio ambiente, direitos humanos e cultura de paz. Não ter pensamentos violentos, palavras agressivas, gestos rudes, mas é difícil, por vezes provocam-nos. Mas desenvolvemos a sabedoria, a compaixão e o discernimento.
Precisamos de ter referências, que pode ser de filósofos, de autores como Fernando Pessoa, que tem coisas maravilhosas, ou de pessoas à nossa volta em que confiamos para conversarmos. O princípio base do Budismo é a impermanência. Agora somos mulheres adultas e eu idosa, isto é a vida, não pára, movimento e transformação, e ao mesmo tempo esta rede de interrelações, não só emocionais, espirituais e físicas, ela aumenta, separa, morre, é infinito o processo. E nunca fazer o mal, mal feito, nem de qualquer jeito, mas o melhor que conseguimos e sempre praticar o bem para todos os seres.